Liberdade é um direito universal, mas nem todos sabem o significado dessa palavra. Maria Hortência da Costa, de 76 anos, passou mais de 40 anos internada em hospitais psiquiátricos. Somente em 2006, teve sua vida transformada graças ao trabalho oferecido pelo serviço residencial terapêutico, que possibilitou sua desospitalização. A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS) tem o maior programa de assistência residencial do país: a cidade conta com 100 moradias mantidas pela Prefeitura, que abrigam mais de 580 ex-internos de hospícios. Este modelo tem como objetivo favorecer a autonomia, construir direitos e oferecer novos começos aos usuários.
Quem vê Hortência hoje, com toda sua vaidade e seu amor por forró, não imagina as coisas terríveis que passou durante sua adolescência. O primeiro encarceramento em um hospício ocorreu quando ela tinha 17 anos, no antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, atual Instituto Municipal de Assistência à Saúde (IMAS) Nise da Silveira, no Engenho de Dentro. Em 1965, foi institucionalizada no Núcleo Teixeira Brandão, da Colônia Juliano Moreira (IMAS Juliano Moreira). De acordo com registros em seu prontuário, Maria sentia muitas dores de cabeça e, quando ficava nervosa, piorava. A usuária dizia que o motivo eram os castigos físicos recebidos na unidade: “Eu levava choque na cabeça.”
– Dona Hortência fala muito sobre sua internação, diz que recebeu eletrochoque, fala que apanhou. São relatos que aparecem com certa frequência e relacionados sempre com o manicômio. Às vezes, estamos conversando coisas que não têm nada a ver com isso, mas ela associa e pergunta se vai receber choque agora – relatou a acompanhante terapêutica da paciente, Amanda de Faria.
Nos anos 2000, para viabilizar o fim das internações, foi implementado o serviço de residências terapêuticas (SRT), como opção de moradia para reintegrar à comunidade os ex-internos de manicômios que haviam perdido os vínculos familiares e não teriam para onde voltar após a desospitalização. Atualmente, Maria Hortência mora na residência terapêutica Bela Vista, na Taquara, e continua recebendo todo o suporte de profissionais da rede, com psicólogos e assistentes sociais vinculados ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Arthur Bispo do Rosário, em Jacarepaguá. A equipe de profissionais sempre busca realizar atividades terapêuticas que ampliem a sua autonomia e socialização. Ela também recebe a cobertura da estratégia de saúde da família para o cuidado clínico.
Os profissionais da unidade contam que, apesar dos episódios de violência vividos, a usuária tem a alegria preservada e, mesmo já idosa, permanece aberta para a vida. Na residência, Maria Hortência gosta de participar das tarefas da casa, ajudar no preparo das refeições, lavar a louça e organizar seu quarto. A usuária tem um bom relacionamento com os outros moradores, todos ex-internos de alguma unidade de internação psiquiátrica, e consegue construir novas relações afetivas pelo território. Ela até tem um namorado.
– Ela namora um morador de outra residência terapêutica. Eles se conheceram em uma fila para atendimento médico e já durante a primeira conversa a Dona Hortência disse que queria casar com ele! Eu vejo que ela ainda tem muito desejo de vida, desejo de se relacionar com as pessoas. Tanto que é isso, ela vai para um médico e interage com quem está lá e, a partir disso, se abre para as pessoas – contou Amanda.
Neste sábado (18/5), Dia Nacional da Luta Antimanicomial, é essencial relembrar as histórias dos pacientes para que casos como o da dona Maria Hortência não se repitam. É uma data que marca o resgate à cidadania e a possibilidade de pessoas que foram privadas de liberdade por anos voltarem a viver longe dos hospícios. A humanização do tratamento garante a qualidade de vida dos pacientes com transtornos mentais graves.
– Ter proximidade com pessoas que foram sequestradas e colocadas no cativeiro dos hospícios me levou a participar da luta antimanicomial e ajudar na construção de uma rede comunitária de cuidados. Dezoito de maio é a data de renovação da luta por uma sociedade sem manicômios, de lutar contra o estigma e pela cidadania – disse o superintendente de Saúde Mental da SMS, Hugo Fagundes.
Além de receber todo o suporte médico e psicossocial necessário, Maria Hortência também recebe o Bolsa Rio. O benefício pago pela Prefeitura do Rio é de dois salários mínimos mensais para pacientes que retornam ao convívio familiar, e de um salário mínimo para aqueles que ingressam em serviços residenciais terapêuticos. Ao todo, 300 pessoas na cidade recebem o Bolsa Rio.
A rede municipal de saúde conta com 37 CAPS, unidades dedicadas ao atendimento de pessoas com transtorno mental severo e persistente, e/ou com transtorno mental decorrente do uso prejudicial de álcool e/ou outras drogas e que precisam de acompanhamento intensivo. Os CAPS II funcionam de segunda a sexta, das 8 às 17h. Já os CAPS tipo III têm funcionamento 24h, durante os sete dias da semana e com oferta de acolhimento noturno para usuários em crise, conforme avaliação da equipe. Os atendimentos de primeira vez no CAPS III são realizados preferencialmente das 8h às 19h.